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quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Norton e o caso do garoto desaparecido: Capítulo 1

Iniciamos, hoje, o projeto "Escreva Mais!". Quarta-feira é dia de novela. Esta aqui foi adaptada de um romance escrito em 1988 e é uma contribuição do Mark Van Bloemm.

Ambientado em meados dos anos 70, o caso simples de um adolescente que sumiu de casa revela um tenebroso período acontecido no país. Misturando realidade e ficção, a narrativa demonstra a determinação de um detetive privado em encontrar um jovem desaparecido. Norton Wolfang, o "Bacharel",  é um ex-policial de quarenta e poucos anos de idade, aposentado após ter sido baleado em serviço, que ganha a vida como um medíocre detetive, cuja vida é uma sucessão de equívocos e páginas incompletas.

Norton e o caso do garoto desaparecido - M.Van Bloemm

Capítulo 1

   O inverno de setenta e seis tinha chegado um pouco tarde, mas o frio que fazia era intenso. 
   No 21º andar da Galeria do Rosário, o vento minuano já uivava forte, fazendo estremecer as janelas. Do alto, observando as pessoas desviarem umas das outras na Andradas com Vigário, ele segurava o copo de Nescafé na mão direita, tirando a esquerda do bolso, vez ou outra, pensativo, para afastar o cigarro da boca e beber, a goles longos, o líquido frio e amargo.
   Foi um susto ao virar-se. Aquela mulher estava ali, imóvel, olhando fixo para ele. “Preciso consertar a sineta da porta” – pensou, “ou despedir esta guria que nunca chega cedo às segundas”.
- O que a Madame deseja?
- Detetive Norton?
- Investigador, Madame. Bacharel Norton às suas ordens.
- Foi o Comissário Nélson quem me deu seu endereço.
- E como vai o “velho”? Não se aposentou ainda?
- Não o conheço muito. Ele não pode fazer muita coisa...
- Ah, sim, entendo.
   Enquanto a mulher falava, envolvida em lágrimas que não borravam a maquiagem, provavelmente importada, coisa fina, ele pode observar seu desespero. Afinal era o relato do desaparecimento do seu filho. Um rapaz notável. Bom filho, bom aluno, bom irmão. Nunca tinha feito isto antes. No máximo sumia uma semana, mas sempre telefonava. Dezessete anos. O vestibular é no fim do ano. Engenharia. Não usava drogas, mas nada sabia dos amigos dele. O menino sumiu e não deixou rastro. O pai amargurado, empresário bem sucedido, já havia sentenciado: “O maconheiro, vagabundo, quando aparecer, vai levar uma surra. Isto não se faz”. E lá se vão dois meses. Ele é um bom rapaz, não é drogado nada, é estudioso. Passa horas trancado no quarto, lendo.
   Aquela mulher muito bonita e bem vestida, conservadíssima para seus quarenta anos declarados, chorava muito enquanto narrava sua Via Crucis: polícia, pronto-socorro, Febem, necrotério, escola. Tudo já tinha sido visto e revisto. Ninguém sabia de nada.
Norton caminhou até a porta da sala, cumprimentou a secretária atrasada, olhando o relógio, acendeu outro cigarro, arremessou a carteira de Hollywood amassada na lixeira da sala de espera. Suspirou fundo e, virando-se para a loira desesperada, pegou ocaso comum simples e seco “deixe comigo e fique tranquila”.
- São 60 mil para achar o garoto e mil por dia, se não o encontrar em trinta dias. Pagos por semana.
- Dinheiro não é problema, doutor Norton. Eu quero meu filho de volta. Esteja onde estiver. Custe o que custar.
   A mulher ainda esperava o elevador quando ele guardou o bloco de anotações e a foto do rapaz na gaveta, e começou a procurar na agenda o telefone do agiota, para prorrogar o prazo até o final do mês.


   
   O Comissário Nélson era um policial de regulamento. Alto, gordo, um pouco calvo. Voz grave e imperativa. Capaz de dar um “bom-dia” e ouvir um “sim, senhor”, de resposta, tal a firmeza de sua fala. Entretanto, por traz do Ray-Ban, pequeno demais para o seu rosto, escondiam-se expressivos olhos de menino esperto e observador, contrastando com o nariz, grande e enrugado. Já fizera de tudo para dar conta do paradeiro do garoto. Até consulta aos seus contatos nos órgãos de informação.
   - "Hoje em dia, Norton, pessoas somem. Não é como no nosso tempo. Nem presunto a gente acha mais. Tem gente nossa metida nisto. É uma guerra. Suja e nojenta. Antes só existia guerra de quadrilhas. Hoje não se sabe mais quem é bandido e quem é mocinho. Quando tu vês, tem até graúdos no meio. Dizem que os comunas provocaram e os milicos resolveram comprar a briga. Tem colega aí (falando baixo) que ganha dinheiro e projeção caçando subversivo. Maior merda". O Nélson nunca se metera nessa. Faltando pouco para a aposentadoria, não queria se meter em confusão. - Sabe como é... "Um dia a coisa vira e eu tô fudido", sentenciou.
   Norton mexia nas fichas policiais enquanto conversava com o Comissário Nélson. A foto que possuía do garoto era a mesma da polícia. Luiz Carlos Silveira Filho, um nome comum. Lula em casa. Caco para os amigos. “Não é política”, pensou. “O quê um piá bom de bola iria fazer misturado a comunistas e subversivos? Maconha prá filho de rico não dá cadeia. No máximo dá uns cascudos. Nem parece ser viciado. Boa família. Muito novo para ser dor de amor. O caso não tem origem”, arrematou em seus pensamentos.
   O papo com o Comissário foi longo. Mataram saudades dos velhos tempos de polícia com boas risadas. É bom encontrar o “velho”. Não fosse ele teria morrido daquela vez. Ferido, encontrou a aposentadoria muito cedo. Uma merda duns trocados, para quem passou dez anos combatendo o crime na linha de frente, levando tiro. Mais dez anos se passaram e os cabelos grisalhos denunciam os quarenta anos que aparentam um pouco mais. A faculdade de Direito foi substituída pela de Jornalismo. No fim, largou tudo, desiludido. Ficou o apelido, pejorativo ou carinhoso, “Bacharel”, colocado pelos antigos colegas de polícia.